Tradução de “Between Ourselves”, poema de Audre Lorde

tammuzs
7 min readAug 21, 2019
1980, Austin, Texas. ©‎ K. Kendall.

Audre Lorde (1932–1992) foi uma poeta americana. Se definia como Negra, lésbica, mulher, guerreira e poeta. Publicou nove volumes de poesia e cinco obras de prosa. “Between Ourselves” foi publicado pela primeira vez no livro The Black Unicorn (1978, W.W. Norton & Company Inc.).

O livro é uma coleção de poemas onde Lorde, que também se chamava de “mito-poeta”, explorou suas raízes a fundo. Filha de pais caribenhos, seu pai era de Barbados e sua mãe de Carriacou, uma dependência de Granada, país caribenho que fica nas Ilhas Granadinas. Lorde usa, em todo seu livro, símbolos míticos que foram trazidos por seus antepassados que ainda persistem nos Estados Unidos e no Caribe (para mais, ver notas) e tenta desencadear o elo entre a mitologia africana e a consciência arquetípica coletiva dos negros. Para ela, a divisão interna dentro da comunidade negra foi um grande motivo de desânimo. Acreditava que os negros puros olham para os mestiços como híbridos e vendidos e os homens desprezam as mulheres. O poema “Between Ourselves” trata justamente dessa preocupação de Lorde.

Between Ourselves

Once when I walked into a room
my eyes would seek out the one or two black faces
for contact or reassurance or a sign
I was not alone
now walking into rooms full of black faces
that would destroy me for any difference
where shall my eyes look?
Once it was easy to know
who were my people.

If we were stripped of all pretense
to our strength
and our flesh was cut away
the sun would bleach all our bones
as white
as the face of my black mother
was bleached white by gold
or Orishala
and how
does not measure me?

I do not believe
our wants have made all our lies
holy.

Under the sun on the shores of Elimina
a black man sold the woman who carried
my grandmother in her belly
he was paid with bright yellow coins
that shone in the evening sun
and in the faces of her sons and daughters.
When I see that brother behind my eyes
his irises are bloodless and without colour
his tongue clicks like yellow coins
tossed up on this shore
where we share the same corner
of an alien and corrupted heaven
and whenever I try to eat
the words
of easy blackness as salvation
I taste the colour
of my grandmother’s first betrayal.

I do not believe our wants
have made our lies
holy.

But I do not whistle his name at the shrine of Shopana
I do not bring down the rosy juices of death upon him
nor forget Orishala
is called the god of whiteness
who works in the dark wombs of night
forming the shapes we all wear
so that even the cripples and dwarfs and albinos
are sacred worshipers
when the boiled corn is offered.

Humility lies
in the face of history
I have forgiven myself
for him
for the white meat
we all consumed in secret
before we were born
we shared the same meal
when you impale me
upon your lances of narrow blackness
before you hear my heart speak
mourn your own borrowed blood
your own borrowed visions.

Do not mistake my flesh for the enemy
do not write my name in the dust
before the shrine of the god of smallpox
for we are all children of Eshu
god of chance and unpredictable
and we each wear many changes
inside our skin.

Armed with scars
healed
in many different colors
I look in my own faces
as Eshu’s daughter crying
if we do not stop killing
the other in ourselves
the self that we hate
in others
soon we shall all lie
in the same direction
and Eshidale’s priests will be very busy
they who alone can bury
all those who seek their own death
by jumping up from the ground
and landing upon their heads.

Entre nós mesmos

Quando eu entrava em uma sala
meus olhos costumavam procurar um ou outro rosto negro
para ligação, reafirmação ou um sinal que
Eu não estava sozinha
agora andando em salas cheias de rostos negros
que poderiam me destruir por qualquer diferença
onde meus olhos deverão olhar?
Antigamente era fácil saber
quem eram os meus.

Se tivéssemos sido despojados de toda a pretensão
de nossa força
e nossa carne fosse cortada
o sol iria alvejar todos nossos ossos
como ossos branco
e o rosto da minha mãe negra
foi branqueado por ouro
ou Orishala
e agora
como não me medir?

Eu não acredito que
nossos desejos fizeram todas as nossas mentiras
sagradas.

Sob o sol, nas margens do Elimina
um homem negro vendeu a mulher que levava
minha avó em sua barriga
ele foi pago com moedas amarelas brilhantes
que reluziam ao sol da tarde
e nos rostos de seus filhos e filhas.
Quando vejo aquele irmão atrás dos meus olhos
sua íris não têm sangue nem cor
sua língua estala como moedas amarelas
jogadas nessa costa
onde nós compartilhamos o mesmo canto
de um céu alienígena e corrompido
e sempre que tento comer
as palavras
de escuridão fácil, como salvação
eu experimento a cor
da primeira traição da minha avó.

Eu não acredito que
nossos desejos fizeram todas as nossas mentiras
sagradas.

Mas não assobio o seu nome no santuário de Shopana
Não derrubo sobre ele os sucos rosados da morte
nem esqueço que Orishala
é chamado de deus da brancura
que trabalha no ventre escuro da noite
formando as corpos que todos nós usamos
para que até mesmo os aleijados e anões e albinos
sejam adoradores sagrados
quando o milho cozido é oferecido.

Humildade encontra-se
na face da história
Eu me perdoei
para ele
para a carne branca
que todos nós consumimos em segredo
antes de nascermos
nós compartilhamos da mesma refeição
quando você me empala
em suas lanças de estreita escuridão
antes de ouvir meu coração falar
lamente seu próprio sangue emprestado
suas próprias visões emprestadas.

Não confunda minha carne com a do inimigo
não escreva meu nome na poeira
perante o santuário do deus da varíola
porque somos todos filhos de Exú
deus do acaso e do imprevisível
e cada um de nós veste muitas mudanças
dentro de nossas peles.

Armado com cicatrizes
e curado
em muitas cores diferentes
Eu olho nos meus próprios rostos
como a filha de Exú chorando
se não paramos de matar
o outro em nós mesmos
o eu que nós odiamos
em outros
em breve todos nós vamos repousar
na mesma direção
e os sacerdotes de Eshidale estarão muito ocupados
aqueles que sozinhos possam enterrar
todos aqueles que buscam sua própria morte
pulem no chão
e pouse sobre suas cabeças.

É importante destacar alguns pontos sobre The Black Unicorn: o primeiro é que Lorde faz menção à mitologia africana em quase todos os poemas do livro e os nomes dos deuses, orixás e voduns mencionados podem variar de região, povos e religiões; o segundo é que Lorde menciona, especificamente, o Reino do Daomé e sua capital Abomei (ver o poema “Dahomey”, já traduzido aqui), que, junto com Allada e Porto Novo, foi um dos principais reinos criados pelos Fon, um dos grupos étnicos e linguísticos da África Ocidental. Fundado no século XVI (c. 1600), o Reino durou até 1904 quando foi conquistado pela França e incorporado à África Ocidental Francesa. Hoje a região é a República do Benim, país que que faz fronteira com o Togo, Burkina Faso e Nigéria. Muitos dos rituais religiosos do Reino do Daomé foram compartilhados com regiões vizinhas, mas seu povo também desenvolveu cerimônias, crenças e histórias únicas que incluíam a adoração de seus ancestrais reais e as práticas específicas de voduns do reino. Apesar de Lorde usar o termo “orixás”, a religião da República do Daomé era o Vodum. O termo “vodum” pode designar tanto a religião quanto os espíritos centrais da África Ocidental, mas é distinto das religiões animistas tradicionais do interior desses mesmos países. Existem tradições relacionadas que lançaram raízes durante o tráfico transatlântico de escravos e persistem até hoje. No Brasil podemos destacar o Tambor de Mina, no Maranhão. Dito isso, o terceiro ponto é que Lorde cita mais voduns do que orixás na sua obra porque, ao procurar suas raízes, remete-se à terra de sua mãe (Carriacou, uma dependência de Granada, país caribenho que fica nas Ilhas Granadinas), onde escravos provenientes dos Reinos de Daomé, Allada e Porto Novo foram levados e incorporaram sua cultura e religião.

[1] Elimina: foi uma cidade portuária no sul de Gana, na África, fundada por comerciantes portugueses.

[2] Eshidale: Orixá local da região de Ifé, na Nigéria. Seus sacerdotes observam e enterram aqueles que cometem suicídio pulando e caindo sobre suas cabeças.

[3] Orishala: considerado o Orixá da brancura, tem o poder de moldar os corpos humanos e é conhecido como o criador da humanidade como ela é. Na religião Iorubá também é chamado de Obatalá e considerado o Deus da Criação. Seus sacerdotes devem usar roupas e comer apenas comidas brancas.

[4] Shopana: considerado o Orixá ligado ao mundo dos mortos. É o responsável pela terra e o Senhor das Doenças — especialmente as epidêmicas, como a varíola — e suas respectivas curas. Sua comida é o milho cozido e a pipoca. Também é conhecido como Shopana, Sakpata, Shakpata, Sopono etc.

[5] Exú: no glossário de The Black Unicorn, Lorde refere-se à Exu como “o filho mais novo e mais inteligente de Mawu-Lisa, que é frequentemente identificado com o princípio masculino”. Também observa que “Exu é o mensageiro malicioso entre todos os outros Orixás e Voduns e humanos. Conhece todos os idiomas, é um linguista completo que transmite e interpreta. Esta função é de suma importância porque os orixás não entendem a língua do outro, nem a linguagem dos humanos. Exu é um trickster, também, uma personificação de todos os elementos imprevisíveis ao vivo”.

LORDE, Audre. Between Ourselves. In: The Black Unicorn. Nova Iorque: W. W. Norton & Company Inc. 1978. p. 112. Tradução e notas de Thamires Zabotto.

--

--

tammuzs

Tradução, poesia, teoria, feminismo, história, arquivos. ⚢