Tradução de “Lesbianism: an Act of Resistance”, de Cheryl Clake

tammuzs
19 min readApr 2, 2020

Lésbica, poeta, ensaísta, professora, feminista negra e ativista comunitária, Cheryl Clarke divide seu tempo entre New Jersey e New York, onde junto com sua esposa, Barbara Balliet, é dona da Blenheim Hill Books, uma livraria de usados e raros em Hobart (NY). É bacharel em Literatura Inglesa (1969) pela Howard University e mestra em Língua Inglesa (1974) e PhD. em Literatura Inglesa (2000) pela Rutgers University, onde deu aula até se aposentar, em 2013, após 41 anos de ensino. Organiza o Hobart Festival of Women Writers. É considerada a maior estudiosa de Audre Lorde e, mesmo depois de aposentada, continua a escrever sobre o trabalho e o impacto da amiga e escritora.

Escreveu os livros Narratives: Poems in the Tradition of Black Women (1981), Living as a Lesbian (1986), Humid Pitch (1989), Experimental Love (1993), Days of Good Looks: Prose and Poetry, 1980–2005 (2006) e By My Precise Haircut (2016). Também publicou inúmeros ensaios, entre eles o famoso After Mecca — Women Poets and Black Arts Movement (2005), o primeiro estudo do gênero que tornou mais visível as contribuições de mulheres negras para um campo que tradicionalmente reconhecia apenas homens negros.

Lesbianism: an Act of Resistance

Capa da primeira edição (1981) da revista “This Bridge Called My Back”, publicada pela Persephone Press (EUA).

Publicado pela primeira vez em 1981 na antologia feminista This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color (Persephone Press, EUA), o ensaio visa é expandir as categorias de quem conta como lésbica e o que é o lesbianismo. Em vez de definir a lésbica apenas como uma mulher que faz sexo com outras mulheres, Clarke insiste que “não há um tipo de lésbica, nenhum tipo de comportamento lésbico e nenhum tipo de relacionamento lésbico.” Pensando em “lésbica” como um continuum, Clarke abre espaço para mulheres que podem ter relações sexuais e emocionais com mulheres, mas que se identificam com outros rótulos (bissexuais, por exemplo). Do mesmo modo, ela redefine o lesbianismo como “um meio ideológico, político e filosófico de libertação de todas as mulheres da tirania heterossexual”. Como Clarke imagina o lesbianismo em oposição à tirania masculina e à heterossexualidade coagida, ela o define como resistência, não importa como uma mulher a pratique em sua vida pessoal. Neste ensaio a autora também compara a política sexual entre homens e mulheres com a dinâmica do senhor de escravo e do escravo, que predomina entre negros e brancos nos EUA, observando como a misoginia heterossexual iniciada pelos senhores de escravos é perpetuada pela liderança negra masculina em organizações burguesas e nacionalistas.

Lesbianismo: um ato de resistência

Para uma mulher ser lésbica em uma cultura supremacista masculina, misógina, racista, homofóbica e imperialista como a da América do Norte é um ato de resistência (uma resistência que deve ser defendida em todo o mundo por todas as forças que lutam pela libertação do mesmo mestre de escravos). Não importa como uma mulher vive seu lesbianismo — no armário, no Poder Legislativo, no quarto — ela se rebelou contra se tornar a concubina do senhor de escravos, isto é, a mulher dependente de homem, a mulher heterossexual. Essa rebelião é um negócio perigoso no patriarcado. Homens em todos os níveis de privilégio, de todas as classes e cores, têm o potencial de agir de maneira legal, moral e violenta quando não podem colonizar as mulheres; quando não podem circunscrever nossas prerrogativas e energias sexuais, produtivas, reprodutivas, criativas. E a lésbica — aquela mulher que, como disse Judy Grahn, “se apaixonou por outra mulher” [1] conseguiu resistir ao imperialismo do senhor dos escravos naquela esfera da vida futura. A lésbica descolonizou seu corpo. Ela rejeitou uma vida de serva implícita nos relacionamentos heterossexuais ocidentais e aceitou o potencial de mutualidade em um relacionamento lésbico — apesar dos papéis.

Historicamente, essa cultura passou a identificar lésbicas como mulheres que, ao longo do tempo, se envolvem em uma variedade de relacionamentos emocionais e sexuais com mulheres. Eu, por exemplo, identifico uma mulher como lésbica aquela que diz que é. O lesbianismo é um reconhecimento, um redespertar, um despertar de nossas paixões por cada (mulher) outra (mulher) e pela mesma (mulher). Essa paixão acabará revertendo o imperialismo heterossexual da cultura masculina. As mulheres, através dos tempos, lutaram e morreram em vez de negar essa paixão. Em seu ensaio “O significado de nosso amor pelas mulheres é o que temos expandir constantemente” [2](“The Meaning of Our Love for Women Is What We Have Constantly to Expand”) , Adrienne Rich (i) afirma:

(…) Antes que qualquer tipo de movimento feminista existisse, ou pudesse existir, lésbicas existiam: mulheres que amam mulheres, que se recusam a cumprir com as regras do comportamento imposto às mulheres, que se recusam a se definirem em relação aos homens. Essas mulheres, nossas antepassadas, milhões cujos nomes não sabemos, foram torturadas e queimadas como bruxas; difamadas em tratados religiosos e, posteriormente, “científicos”; retratadas na arte e na literatura como mulheres bizarras, alheias à moral, destrutivas e decadentes. Durante muito tempo as lésbicas foram a personificação do mal feminino.

(…) Lésbicas têm sido forçadas a viver entre duas culturas, ambas dominadas por homens, cada uma delas negando e ameaçando nossa existência. De um lado está a cultura patriarcal heterossexista, persuadindo mulheres ao casamento e a maternidade usando todas as pressões possíveis — econômicas, religiosas, médica e legal — e que, literalmente, colonizou os corpos das mulheres. A cultura patriarcal heterossexual levou as lésbicas a culpa e às sombras, muitas vezes ao ódio à si mesmas e ao suicídio.

A síntese em evolução do lesbianismo e do feminismo — duas ideologias centradas nas mulheres e com poder — está quebrando esse silêncio e sigilo. A análise a seguir é oferecida como um pequeno corte contra a pedra do silêncio e do sigilo. Não se destina a ser original ou inclusivo. Dedico este trabalho a todas as mulheres escondidas da história, cujo sofrimento e triunfo permitiram que eu chamasse meu nome em voz alta.

A mulher que abraça o lesbianismo como um meio ideológico, político e filosófico de libertação de todas as mulheres da tirania heterossexual também deve se identificar com a luta mundial de todas as mulheres para acabar com a tirania supremacista masculina em todos os níveis. No que me diz respeito, qualquer mulher que se diz feminista deve comprometer-se com a libertação de todas as mulheres da heterossexualidade coagida, pois se manifesta na família, no estado e na Madison Avenue. A lésbica-feminista luta pela libertação de todas as pessoas da dominação patriarcal através do heterossexismo e pela transformação de todas as estruturas, sistemas e relações sócio-políticas que foram degradadas e corrompidas ao longo de séculos de dominação masculina.

No entanto, não existe um tipo de lésbica, nenhum tipo de comportamento lésbico e nenhum tipo de relacionamento lésbico. Também não há um tipo de resposta às pressões sob as quais as lésbicas enfrentam para sobreviver como lésbicas. Nem todas as mulheres envolvidas em um relacionamento sexual-emocional com outras se denominam lésbicas ou se identificam especificadamente com uma comunidade lésbica. Muitas são apenas lésbicas para uma comunidade específica e passam como heterossexuais enquanto trafegam entre inimigos (isso é análogo a ser negro e se passar como branco, com apenas a família imediata conhecendo suas origens).

Ainda, aquelas que se escondem no armário da presunção heterossexual são cedo ou tarde descobertas. A história do “negro-na-pilha-de-lenha” (ii) é recontada. Muitas mulheres são politicamente ativas como lésbicas, mas podem ter medo de dar as mãos as suas companheiras enquanto atravessam o território heterossexual (essa resposta à predominância heterossexual pode ser comparada à reação da estudante negra que integra um dormitório predominantemente branco e que teme deixar a porta do quarto aberta ao tocar música gospel). Tem a mulher que se envolve em relações sexuais e emocionais com mulheres e se rotula bissexual (isso é comparável ao afro-americano cuja cor de pele induz sua ancestralidade mista, mas diz que é “mulato” em vez de negro). Bissexual é um rótulo mais seguro que lésbica, pois propõe a possibilidade de um relacionamento com um homem, independentemente de quão pouco frequente ou inexistente possa ser o relacionamento da mulher bissexual com homens. E então há a lésbica que é lésbica em todo e qualquer lugar e que está em confronto direto e constante com presunção, privilégio e opressão heterossexuais (sua luta pode ser comparada à dos ativistas dos Direitos Civis dos anos 60 que estavam lá fora nas ruas pela liberdade, enquanto muitos de nós assistimos à ação da televisão).

Onde quer que nós, lésbicas, passemos por esse continuum político muito generalizado, devemos saber que a instituição da heterossexualidade é um costume obstinado, através do qual instituições supremacistas masculinas asseguram sua própria perpetuidade e controle sobre nós. As mulheres são mantidas e contidas por terror, violência e sêmen. É lucrativo para os colonizadores limitar nossos corpos e nos alienar dos próprios processos da vida, pois era lucrativo para os europeus escravizarem os africanos e destruírem toda a memória de uma liberdade e autodeterminação anteriores — a despeito do que escreveu Alex Haley (iii). E, assim como o fundamento do capitalismo ocidental dependia do comércio de escravos do Atlântico Norte, o sistema de dominação patriarcal é apoiado pela subjugação das mulheres pela heterossexualidade. Assim, os patriarcas devem exaltar a díade de menino-menina como “natural” para nos manter héteros e compatíveis da mesma maneira que os europeus tiveram que exaltar a superioridade caucasiana para justificar o comércio de escravos na África. Contra esse pano de fundo histórico, a mulher que escolhe ser lésbica vive perigosamente.

Como membro do maior e do segundo grupo de pessoas de cor mais oprimidas, como mulher cujo suas antecessoras, escravas e ex-escravas sofreram um dos imperialismos racistas e supremacistas mais brutais da história ocidental; a lésbica negra teve que sobreviver também a mutilação psíquica da superioridade heterossexual. A lésbica negra é coagida à experiência do racismo institucional — como todos os outros negros da América — e deve sofrer também o sexismo homofóbico da comunidade política negra, alguns dos quais parecem ter esquecido tão cedo a dor da rejeição, negação e repressão sancionada pela América racista. Enquanto a maioria das lésbicas negras engajadas com política não dão a mínima se a América branca é negrofóbica, isso se torna profundamente problemático quando a comunidade política negra contemporânea (outra instituição dominada e identificada por homens) nos rejeita por causa de nosso compromisso com a as mulheres e sua libertação. Muitos membros negros da comunidade ainda parecem não entender a conexão histórica entre a opressão dos povos africanos na América do Norte e a opressão universal das mulheres. Como Elizabeth Cady Station, a ativista e abolicionista de direitos das mulheres, apontou durante a década de 1850: o racismo e o sexismo foram produzidos pelo mesmo animal, isto é, “o homem branco saxão”.

A opressão de gênero (por exemplo, a exploração e o controle masculino das energias produtivas e reprodutivas das mulheres com base na ilusão da diferença biológica) originou-se da primeira divisão do trabalho, a saber, entre mulheres e homens, e resultou no acúmulo de propriedade privada, usurpação patriarcal do “direito da mãe” ou matrilinhagem, e a instituição supremacista masculina duplicada da monogamia heterossexual (apenas para mulheres). A política sexual, portanto, reflete o relacionamento explorador e de classe entre o mestre de escravos e o escravo africano — e o impacto de ambos os relacionamentos (entre negro e branco e mulheres e homens) tem sido residual além da emancipação e do sufrágio. O homem branco da classe dominante tinha um modelo centenário para o tratamento diário do escravo africano. Antes de aprender a justificar a contínua escravização do africano e a contínua privação do ex-escravo com argumentos da inferioridade mental e moral divinamente ordenada da África para si mesmo (uma cortina de fumaça para sua ganância capitalista), o homem branco aprendeu, dentro da estrutura da monogamia heterossexual e sob o sistema de patriarcado, a relacionar-se com negros — escravo ou livre — como um homem se relaciona com uma mulher, isto é, como propriedade, como mercadoria sexual, como servo, como fonte de mão-de-obra gratuita ou barata e, de forma inata, um ser inferior.

Embora contra-revolucionária, a heterossexualidade ocidental, que promove a supremacia masculina, continua sendo defendida por muitos negros, especialmente homens, como o estado de coisas mais desejado entre homens e mulheres. Essa observação é confirmada nas páginas de nossas publicações negras mais acadêmicas e nas publicações negras mais comerciais, que vêem a questão das relações negras entre homens e mulheres através das lentes do viés heterossexual. Mas isso é de se esperar; uma vez que, historicamente, a heterossexualidade era um dos nossos únicos meios de poder sobre nossa condição de escravos e um dos dois meios que tínhamos à nossa disposição para apaziguar o homem branco.

Agora, como ex-escravos, os homens negros têm mais liberdade para oprimir as mulheres negras porque não precisam mais competir diretamente com o homem branco pelo controle do corpo das mulheres negras. Agora, o negro pode assumir o papel de “senhor” e pode tentar tiranizar as mulheres negras. O homem negro pode ver a lésbica — que não pode ser manipulada ou seduzida sexualmente por ele — da mesma maneira que o senhor de escravos brancos uma vez viu o escravo negro, isto é, como uma caricatura perversa da masculinidade, ameaçando sua posição de domínio sobre o corpo feminino. Essa visão, é claro, é uma “ilusão neurótica” imposta aos homens negros pelos ditames da supremacia masculina, que o homem negro nunca pode cumprir porque não possui os meios capitais e privilégios raciais.

Historicamente, há um mito no mundo negro que existem apenas duas pessoas livres nos EUA: o homem branco e a mulher negra. Este mito foi criado pelo homem negro no longo período de sua frustração, quando ele desejava ser livre para ter as vantagens materiais e sociais do homem branco, o seu opressor. Analisando este misto, essa suposta liberdade foi baseada nas prerrogativas sexuais adotadas pelo homem branco na mulher negra. O homem negro imaginou que a mulher negra gostou disso. [3]

Enquanto o feminismo lésbico ameaça o controle predatório das mulheres negras pelo homem negro, seu objetivo como ideologia e filosofia política não é levar a posição do homem negro ou de qualquer homem ao topo. As lésbicas negras que trabalham dentro de grupos ou organizações por, para e sobre pessoas negras passam como “heterossexuais” ou relegam nosso lesbianismo à chamada esfera “privada”. Quanto mais dominado por homens ou pela burguesia nacionalista negra um grupo ou organização é, mais ele é mais resistente à mudança e, portanto, mais homofóbico e anti-feminista. Nesses setores, aprendemos a manter um perfil discreto.

Em 1979, na conferência anual em uma regional do National Black Social Workers, o diretor nacional desse órgão foi aplaudido de pé pelas seguintes observações:

Os homossexuais têm até o status de minoria agora … E as mulheres brancas também. E algumas de vocês negras que se autodenominam feministas estarão sentadas em reuniões com as mesmas mulheres brancas que roubarão seus homens às escondidas.

Esse tipo de acusação da revolução das mulheres e implicitamente da libertação lésbica é manifestada em todo o movimento negro (masculino) burguês. Mas essa é a natureza insidiosa da supremacia masculina. Embora o homem negro considere o racismo sua opressão primária, é difícil reconhecer que o sexismo está inextricavelmente ligado ao racismo que a mulher negra deve sofrer, nem pode ver que nenhuma mulher (ou homem) será libertada do relacionamento original de “escravo”, isto é, isso entre homens e mulheres, até que todos sejamos libertados da falsa premissa de superioridade heterossexual. Esse relacionamento predatório corrompido entre homens e mulheres é o fundamento do relacionamento senhor-escravo entre brancos e negros nos EUA.

A tática que muitos homens negros usam para intimidar as mulheres negras de abraçar o feminismo é reduzir os conflitos entre mulheres brancas e mulheres negras em um “cabo-de-guerra” para o pênis negro. E a lésbica negra, como dito anteriormente, não está interessada em seu pênis; assim, ela mina a única fonte de poder do homem negro sobre ela: sua heterossexualidade. Lésbicas negras e todas as mulheres negras envolvidas na luta pela libertação devem resistir a essa manipulação e sedução.

A lésbica negra, como todo lésbica nos EUA, está em toda parte: na casa, na rua, nas listas de assistência social, de desemprego e da previdência social, criando filhos/trabalhando em fábricas, nas forças armadas, na televisão, no sistema público de ensino, em todas as profissões, cursando faculdade ou pós-graduação, trabalhando como gerentes, etc. A lésbica negra, como qualquer outra classe não-branca, trabalhadora e pobre dos EUA, não teve o luxo, o privilégio ou a opressão de ser dependente de homens; mesmo que nossos colegas homens estivessem presentes, compartilhado de nossas vidas trabalhos e lutas, também diminuíram nossa “dignidade humana” ao longo do caminho, como a maioria dos homens no patriarcado — essa família imperialista de do homem. Nunca poderíamos depender deles para “cuidar de nós” apenas com seus recursos — isto é, claro, outra “ilusão neurótica” imposta a nossos pais, irmãos, amantes e maridos — que eles deveriam “cuidar de nós” porque somos mulheres. Traduzindo: “cuidar de nós” significa “nos controlar”.

O único poder de nossos irmãos, pais, amantes e maridos é sua masculinidade. E, a menos que a masculinidade seja de algum modo embelezada pela pele branca e por gerações de riqueza privada, ela tem pouca importância no patriarcado racista e capitalista. Ao homem negro, por exemplo, é concedido o status de elite nativa ou guarda colonial ou vigilante de mulheres negras no patriarcado imperialista.

Ele é, geralmente, um heterossexual raivoso. Desde sua emancipação é autorizado a criar uma família “legítima”, a ter seu território, isto é, sua esposa e filhos. Isso é até onde sua ditadura se estende; se sua esposa decide que quer sair de casa por qualquer motivo, ele não tem o poder ou recursos para persuadi-la de outra forma — caso contrário, ela esta determinada a jogar fora o jugo benigno ou malicioso da dependência. Por outro lado, o homem branco da classe dominante sempre teve o poder de contar com mulheres como sua reserva de mão-de-obra barata, seus meios de produção etc. Recentemente, o homem branco “permitiu” às mulheres o direito de se divorciarem, pedir pensão alimentícia e serem neocolonizadas.

Tradicionalmente, homens e mulheres negros pobres que se uniam, permaneciam e criavam filhos não tinham o luxo de cultivar a dependência entre os membros de suas famílias. Assim, a lésbica negra, como a maioria das mulheres negras, foi condicionada a ser auto-suficiente, ou seja, não dependente de homens. Para mim, pessoalmente, o condicionamento para ser auto-suficiente e a predominância de modelos femininos na minha vida são as raízes do meu lesbianismo. Antes de me tornar lésbica, muitas vezes me perguntava por que deveria desistir, evitar e banalizar o reconhecimento e o incentivo que sentia das mulheres, a fim de perseguir os negócios tênues da heterossexualidade. E eu não sou única.

Como lésbicas políticas, i.e, lésbicas que resistem às tentativas da cultura predominante de nos manter invisíveis e impotentes, devemos nos tornar mais visíveis (principalmente as negras e outras lésbicas de cor) para nossas irmãs escondidas em seus vários armários, trancadas em prisões de ódio e ambiguidade, com medo de levar o antigo ato de vínculo com as mulheres para além do sexual, do privado e do pessoal. Não estou tentando reificar o lesbianismo ou o feminismo. Estou tentando salientar que o feminismo lésbico tem o potencial de reverter e transformar um componente importante no sistema de opressão das mulheres, isto é, heterossexualidade predatória. Se o feminismo lésbico radical objetiva uma visão anti-racista, anti-classista e anti odiar mulheres, uma visão de vínculo como mútuo, recíproco e infinitamente negociável, como liberdade das prescrições e proscrições antiquadas de gênero, então todas as pessoas que lutam para transformar o caráter dos relacionamentos nesta cultura têm algo a aprender com as lésbicas.

A mulher que ama outra mulher vive perigosamente no patriarcado. E pesa ainda mais se ela escolher, como sua amante, uma mulher que não é de sua raça. O silêncio entre as lésbicas feministas sobre a questão das relações lésbicas entre negras e brancas nos EUA é causado pelo tabu e leis seculares dos EUA contra as reações entre pessoas de cor e os de raça caucasiana. Falando heterossexualmente, as leis e tabus eram um reflexo das tentativas do senhor de escravos patriarcal de controlar sua propriedade pelo controle de sua linhagem através da instituição da monogamia (somente para mulheres) e justificaram os tabus e leis com o argumento de que a pureza da raça caucasiana deve ser preservado (assim como sua supremacia).Entretanto, sabemos que suas leis e tabus racistas e racialistas não se aplicavam a ele em termos da escrava negra, assim como suas leis e tabus classistas que dizem respeito à relação entre a classe dominante e os servos contratados não se aplicavam a ele em termos de a criada branca que ele escolheu estuprar. O filho nascido de quaisquer uniões entre o senhor escravo da classe dominante branca e a escrava negra ou serva contratada não poderia herdar legalmente a propriedade ou o nome de seu pai branco ou classe dominante, apenas a condição de servidão de suas mães.

O tabu contra negros e brancos que se relaciona em qualquer outro nível que não seja o nível de senhor-escravo, superior-inferior, foi proposto nos EUA para manter mulheres e homens negros e mulheres e homens brancos, que compartilham uma opressão comum nas mãos da classe dominante de se organizarem contra essa opressão comum. Nós, como lésbicas negras, devemos resistir veementemente a ser vinculados pelas leis sexistas racistas do homem branco, que colocam em risco a intimidade potencial de qualquer tipo entre brancos e negros.

Não se pode presumir que lésbicas negras envolvidas em amor, trabalho e relações sociais com lésbicas brancas o façam por ódio e negação de nossa herança racial-cultural, identidades e opressão. Por que o compromisso de uma mulher com a luta deve ser questionado ou aceito com base na cor da pele de sua amante ou camarada? Não se pode presumir que lésbicas brancas envolvidas igualmente com lésbicas negras ou quaisquer lésbicas de cor estejam agindo por algum desejo racialista perverso e cheio de culpa.

Pessoalmente, estou cansada de ir a eventos, conferências, oficinas, sessões de planejamento que envolvam uma reunião de lésbicas negras e outras de cor por razões políticas ou até sociais, e ouvir lésbicas negras relegar feminismo a mulheres brancas, castigar mulheres negras que propõem a formação coalizões com grupos feministas predominantemente brancos, minimizam a opressão da mulher branca e exageram seu poder e, finalmente, julgam que o compromisso de uma lésbica negra com a libertação de mulheres negras é duvidoso porque ela não dorme com uma mulher negra. Todos nós temos que aceitar ou rejeitar aliados com base na política e não na base ilusória da cor da pele. Os negros não sofreram traição de nosso próprio povo?

Sim, as experiências de misoginia das mulheres negras são diferentes das mulheres brancas. No entanto, todos contribuem para a maneira como o senhor escravo patriarcal decidiu nos oprimir. Nós dois brigamos por seu favor, aprovação e proteção. Tal é o efeito do patriarcado imperialista e heterossexista. Shulamith Firestone [4], no ensaio “Racism: the Sexism of
the Family of Man”
(“Racismo: o Sexismo da Família do Homem”), propõe essa análise da relação entre mulheres brancas e negras:

Como as mulheres deste triângulo racial se sentem uma com a outra? Dividir e conquistar: as duas mulheres se tornaram hostis uma à outra, mulheres brancas sentindo desprezo pelas “vadias” sem moral, mulheres negras sentindo inveja pelos mimos, como “pó-de-arroz”. A mulher negra tem inveja da legitimidade, privilégio e conforto da mulher branca, mas também sente profundo desprezo… Da mesma forma, o desprezo da mulher branca pela mulher negra é misturado com inveja: pela maior licença sexual da mulher negra, por sua coragem, por sua liberdade no casamento. Afinal, a mulher negra não está sob o controle de um homem, mas é praticamente o seu próprio chefe para ir e vir, sair de casa, trabalhar (da mesma forma que o trabalho é degradante) ou ser “indiferente”. O que a mulher branca não sabe é que a mulher negra, não estando presa a um homem só, agora pode ser esmagada por todos. Não há alternativa nenhuma senão a escolha entre ser propriedade pública ou privada, mas porque cada um ainda acredita que o outro está se safando de algo, ambos podem ser enganados para desviar sua frustração um do outro e não para o inimigo real: “O Homem” [4].

Embora sua declaração sobre as escolhas que as mulheres negras e brancas tenham sob patriarcado nos EUA tenha mérito, Firestone analisa apenas uma relação específica, ou seja, entre a mulher branca da classe dominante e a escrava ou ex-escrava. Por causa de sua brancura, foi concedida à mulher branca de todas as classes, assim como o homem negro, devido à sua masculinidade, certos privilégios no patriarcado racista, por exemplo, servidão contratada em oposição à escravização, direito exclusivo à assistência pública até a década de 1960, filhos “legítimos” e (se casados na classe média/alta) o luxo de viver com a renda do marido, etc.

A mulher negra, que não tem a masculinidade nem a brancura, sempre teve sua heterossexualidade, que homens brancos e homens negros manipularam pela força e vontade. Além disso, ela, como todas as pessoas pobres, teve seu trabalho, que o capitalista branco também pegou e explorou à vontade. Essas capacidades permitiram às mulheres negras acesso mínimo às migalhas lançadas nos homens negros e nas mulheres brancas. Então, quando a mulher negra e a branca se tornam amantes, trazemos essa história e todas essas questões para o relacionamento, bem como os problemas de outras pessoas com o relacionamento. O tabu contra a intimidade entre brancos e negros foi interiorizado e simultaneamente desafiado por nós. Se nós, como feministas lésbicas, desafiarmos o tabu, então começaremos a transformar a história dos relacionamentos entre mulheres negras e mulheres brancas.

Em seu ensaio, “Disloyal to Civilization: Feminism, Racism, Gynephobia”, Adrienne Rich [5] pede que as feministas atendam às complexidades do relacionamento entre mulheres negras e brancas nos EUA. Rich questiona:

Que caricaturas de fragilidade sem sangue e sensualidade ainda impregnam nossa psique e onde recebemos essas impressões? O que aconteceu entre as milhares de mulheres brancas do norte e as mulheres negras do sul que juntas ensinaram nas escolas fundadas em Reconstrução pelo Departamento de Liberados, enfrentando lado a lado o assédio de Ku Klux Klan, o terrorismo e a hostilidade das comunidades brancas?*

Então, todos nós faríamos bem em parar de brigar pelo nosso espaço na parte inferior, porque não há mais espaço. Passamos muito tempo nos odiando. Hora de amar a nós mesmas. E isso, para todas as lésbicas, como amantes, como camaradas, como combatentes da liberdade, é a resistência final.

*Gostaria de dar um reconhecimento especial à “A Black Feminist Statement” (“Uma Declaração Feminista Negra”)do coletivo Combahee River porque este documento defende “a luta contra a opressão racial, sexual, heterossexual e de classe”. Tornou-se um manifesto do pensamento, ação e prática feministas radicais.

REFERÊNCIAS

[1] Grahn, Judy. “The Common Woman”, The Work of a Common Woman. DianaPress. Oakland, 1978, p. 67.

[2] Rich, Adrienne, On Lies, Secrets, and Silence: Selected Prose 1966–1978. W.W. Norton. New York, 1979, p. 225. 3

[3] Robinson, Pat and Group, “Poor Black Women’s Study Papers by Poor Black Women of Mount Vernon, New York”, in T. Cade (ed). The Black Woman: An Anthology. New American Library. New York. 1970. p. 194. 4

[4] Firestone, Shulamith, The Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution. Bantam Books, New York, 1972, p. 113. 5

[5] Adrienne Rich, op. cit., p. 298.

n.d.t

(i) Este texto é, na verdade, um discurso proferido por Adrienne Rich no New York Lesbian Pride Rally de 1977. No mesmo ano, chegou a ser publicado em uma série de publicações curtas (ou “panfletos”) intitulada Pamphlets Series, da (extinta) Out & Out Books, editora que também publicou, durante os anos de 1975 e 1980, textos e livros de autoras como Audre Lorde, Barbara Smith e Marilyn Hacker. Posteriormente, este discurso foi publicado no livro On Lies, Secrets, and Silence: Selected Prose (1966–1978), uma coletânea de 21 textos da autora, lançado pela W. W. Norton & Company em 1979.

(ii) Negro na pilha de lenha (trad. lit. de “nigger in the woodpile”) ou negro na cerca (“nigger in the fence”) é uma figura de linguagem americana que significa “algum fato de considerável importância que não é divulgado — algo suspeito ou errado”. Foi muito usado no final do século XIX e início do século XX. O uso dessa frase por figuras públicas foi frequentemente criticado ao racismo do termo nigger. Assim, a frase foi substituída por “um tigre na pilha de lenhas” (trad. lit. “tiger in the woodpile”) e também por frases semelhantes, embora não totalmente sinônimos, como “esqueleto no armário” (“skeleton in the closet”).

(iii) Alex Haley (1921–1992) foi um escritor americano. Escreveu “Roots: The Saga of an American Family” (1976). A ABC, rede de TV americana, adaptou o livro como uma minissérie de mesmo nome que foi ao ar em 1977 para uma audiência recorde de 130 milhões de telespectadores. Nos EUA, o livro e a minissérie aumentaram a conscientização do público sobre a história negra americana e inspiraram um amplo interesse em genealogia e história da família. Haley também foi famoso por ter escrito a biografia de Malcolm X (“The Autobiography of Malcolm X”).

Tradução de Thamires Zabotto.

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